E ali estavas tu. Vó Irene. Como sempre te chamámos. Numa cama de hospital, com uma dezena de amigos sentados à tua volta. O sorriso era o teu. Bem disposto, como quem corre para nos abraçar (nós à porta, o pai a dizer: a avó vai estar com o cabelo rapado, façam de conta que é normal). Entrámos, engolindo o choque como quem engole um pacote de sugus (aqueles que quase todas as manhãs nos trazias, lembras-te? Muitas vezes às escondidas, para que o pai não visse que nos enchias de doces).
Nós com medo de entrar. E tu a afastar o pessimismo com uma dose de coragem que nunca soube ter. Só a nossa presença te parece lembrar a fragilidade de estar doente. Saltamos para a cama, procurando agarrar um pouco da tua esperança (as lágrimas na tua face denunciam o medo que afinal é). Mas apressas-te a fazer-nos sair. Os hospitais não são lugar para crianças, dizes (o meu olhar pára na cama em frente à tua, onde um corpo jaz votado ao abandono. A vida suspensa por um emaranhado de tubos e máquinas, e ninguém para ver). Tens razão. Mas também nunca foram lugar para ti.
Uns dias depois regressaste a casa (à tua casa. Nunca quiseste vir para aqui, dar trabalho, dizias. Continuámos à distância de um prédio). E fui perdendo a conta ao número de vezes que voltaste ao hospital (o telefone a tocar e os pais a descer as escadas a quatro e quatro. Eu no quarto a fingir não perceber o que se passava. E as notícias que tardavam). Não nos chegámos a despedir. E ainda hoje, quase dez anos depois, me dói esse momento que não foi. Como se nunca tivesses parado de morrer.
Do alto dos meus 14 anos acreditava que nada podia derrubar-te (gostam do meu novo visual, perguntavas, ostentando a cabeça rapada como se nada fosse. E eu acreditava). Não sabia avó. Não sabia que não ia voltar a acordar com os teus passos a subir a escada. A respiração ofegante de uns 71 anos que todos os dias venciam um quarto andar sem elevador (no Verão, os lanches na velhinha Leitaria da esquina lembram-me imperiais com tremoços para ti, leite e bolos para nós. A viagem à Madeira, as partidas e anedotas que não te cansavas de contar, os dias passados na tua casa, outrora uma pensão, com amigos de há muito).
E entravas de mansinho para nos acordar. O som dos sacos de compras a acompanhar os teus passos. A chave a entrar na fechadura (é hora de comer meninos. Lá vão vocês juntar o pequeno-almoço com o almoço, pareço ouvir ainda). E acordavas-nos com beijos. Primeiro eu, o quarto mais próximo da porta de entrada. Depois o Rui, sempre mais preguiçoso. As portadas das janelas semiabertas. Na altura ainda não tínhamos aderido aos estores. Nunca chegaste a vê-los (ficaram tantas coisas por veres. Tantas saudades do que foi, mais o que ainda vai ser. De o partilhar contigo, avó).
E eu volto àquele quarto de hospital (até o hospital dos Capuchos, mais ano menos ano, vai fechar, sabias?). As lembranças vão-se esbatendo, tal como as visitas, interrompidas pelo agravar da tua doença (segundo tumor, segunda cirurgia. Já sem as indisposições da quimioterapia e da radioterapia. Sem as sestas mais prolongadas depois do almoço). Desta vez perdemos. Fica a certeza de sermos crianças. De volta ao quarto e aos sugus (de laranja, se houver).
terça-feira, 11 de setembro de 2007
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2 comentários:
Este momento foi. Como se nunca tivesses parado de escrever.
Afinal foi fácil e nem precisaste das sandálias. ;)
Subscrevo.
Sabes bem que sempre foste alta =)
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