quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Pensamento depois de reouvir "O Irmão do Meio"

A música do Sérgio Godinho é gémea dos romances do Saramago.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Praça Dom Miguel

Na Praça Dom Miguel, o subúrbio dos grandes prédios anónimos esquece-se que é. A calma é tanta que até o sol se envergonha e pede licença para espalhar uns raios tímidos por ali. Só a meia dúzia de comerciantes com a sua meia dúzia de clientes se sente em casa.
À entrada do largo está a velha loja de pronto-a-vestir onde a minha mãe clientava quando eu era pequeno. Havia a despachada Senhora Hamster: gorducha, de papo inchado (era comida armazenada, pela certa), os dentes da frente por cima do lábio inferior.
O marido da Senhora Hamster, que também costuma estar na loja, não é o Carlos Ribeiro. Sei-o agora. Da data da revelação não me lembro, mas tenho a certeza de que foi acompanhada por tremenda desilusão. Aos cinco ou seis anos eles eram a mesma pessoa, garanto. O mesmo ar apalermado e bonacheirão. E o cabelo, impressionante e inesquecivelmente encaracolado.
Pertinho da loja da Senhora Hamster e do Senhor Carlos Ribeiro fica uma padaria que não existe. Parece que vende pão, quiçá bolos. Talvez até tenha dono, funcionários e clientes, mas nada disto existe, só uma vitrina grande com um símbolo traçado a verde e amarelo.
Ao lado está a loja mágica. Venda de ferragens deve ser a melhor definição. Para mim era o sítio onde se ia quando o avô estava em minha casa e lhe dávamos biscates para o entreter. Sentado num banco, óculos pouco habituados a equilibrarem-se na cana do nariz, desencaixava e reencaixava a porta do armário da cozinha que já não fechava bem. Até à hora do diagnóstico:
- É preciso uma dobradiça nova.
E eu ia com ele, imitando o seu passo lento de quem já não precisa de correr, a caminho da loja das ferragens.
À funcionária, dissesse-se uma palavra e logo ela apresentava a correcta solução. Solícita e simpática, sumia-se por segundos e voltava com a peça necessária.
Na Praça Dom Miguel há ainda o velho ginásio. A porta é tão pequena e os machos do halterofilismo tão massivamente maciços que sempre que entra um cliente há um eclipse.
No centro da praça há um pequeno poço, talvez chafariz, quem sabe laguinho. Avós têm de se levantar dos bancos de jardim para evitar que os netos chafurdem na água pouco limpa.
A torre do relógio, impecavelmente certo duas vezes por dia, só é grandiosa vista de fora. No largo, é apenas um bloco de cimento furado por uma escada vertical de ferro, usada por nenhum técnico. Só a imaginação das crianças percorre aqueles degraus. O que importa é que haja trilho para o céu; meninos não se preocupam se o caminho é um pé de feijão mágico ou umas velhas escadas ferrugentas.