quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Não te incomodes, manda-me só uma mensagem


Uma tendência que vem ganhando força nos últimos anos é a substituição de postais e telefonemas de Natal por SMS. Ia escrever “simples SMS” mas o problema é mesmo esse. Para mim e para os milhares de utilizadores diários deste serviço, as SMS de Natal não são nenhum drama. Podemos responder a todas, com mensagem padronizada ou pessoal, ser selectivos ou optar por ignorar toda a gente por igual.

Mas sejamos sinceros, a grande emoção é para os cinquentões (incluam-se alguns quarentões e sessentões no grupo). Para esta malta dos cinquenta e tal, a mensagem de Natal tem de ser retribuída, não se vá pensar que são mal-educados. Ou, pior ainda, tecnologicamente ultrapassados. Então, dá gosto ver o entusiasmo com que esta gente acolhe primeiras mensagens natalícias. Pega-se no telefone de imediato e lê-se a mensagem em voz alto ao cônjuge – a maioria das mensagens dos cinquentões destinam-se ao casal ou à família.

É então tempo de responder. Arranje-se um banco confortável, com aquecimento q.b., porque os pés podem arrefecer, mas não demasiado, porque a tarefa é árdua e ao fim de uns minutos chegam os calores. E lá vai disto: procura-se o menu certo, não sem alguns percalços, e finalmente, a grande aventura de descobrir as teclas certas para cada letrinha. Nada demais: qualquer quarto de hora basta, se a meio não se carregar no “apagar mensagem” ou se o a bateria do telemóvel não se descarregar entretanto.

Por fim, orgulhoso pelo feito tecnológico, o nosso Bill Gates cinquentão está pronto para retomar a conversa com a família – como é óbvio, enquanto se escreve uma mensagem, o resto do mundo nem paisagem é – e trincar um filhós. Até que chega nova SMS. Limpa-se o açúcar dos dedos, pega-se no telemóvel e o ciclo repete-se. Ao fim de umas cinco ou seis, podemos avaliar a personalidade do cinquentão: os persistentes sacodem o açúcar dos dedos com cada vez mais minúcia; os impacientes começam a bufar de cada vez que ouvem o apito do telemóvel.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Chocolatices


Já havia o Dove, que tanto servia para lavar as mãos como para adoçar a boca. Ontem ouvi publicidade aos chocolates Lindor. Para quando uns bombons WC Pato?

sábado, 8 de dezembro de 2007

Volta da noite, Lisboa

Nas noites de quarta-feira, os carros são muitos nos acessos da cidade. Em magote, furam o nevoeiro com pares de olhos amarelados mas desaparecem assim que entram no coração de Lisboa. Preferem as circulares e as estradas sem identidade, vias onde não se vive, só se corre. Parecem temer a história e recusar um passado que é de todos. Escondem-se, desviam-se, apressam-se. Quando um ou outro foge da rota e se atreve a infiltrar-se nas ruas logo se apressa a corrigir o erro. Estou aqui a mais, ao menos que não me vejam.
As ruas são dos almeidas, da bófia e dos taxistas. Os homens do lixo apressam-se, estardalham, quebram o pacto de silêncio. Têm cor e têm voz. Esta é a hora e este candeeiro é o meu sol. Mas até para eles há frio e o tempo é salário. Corram portanto, corram por tanto.
Os bófias não são todos iguais. Alguns acumulam-se nas carrinhas da intervenção. Grandes, fortes e desperdiçados. Bovinos observadores da cidade. Os outros solitários. Atirados para cantos, são postes que não iluminam. Fantasmas desiludidos que olham os bêbedos de garrafas na mão e sonham com uma caneca de leite quente.
Os taxistas são pessoas. Não interessam.
Nas esquinas há putas e travestis. As putas negoceiam sexo. O corpo não está à venda porque já não tem dono há muito tempo. Estão prostibrutas.
Os travestis são as maiores quengas de todas. Carcaças de maquilhagem e lantejoulas. Abrem o casaco de peles e abanam o mamaçal à solta. O espectáculo é gratuito e obrigatório, come e cala.
Pelos condes redondos há predadores. Vêm aos cinco e aos seis, saídos de Mercedes e BMW pretos. Os vidros não são fumados senão não me vias, filha. Felizes sejam os machos. Procuram as portas das showgirls, das casas de strip, dos clubes privados.
Iluminam-lhes a busca os néons das letras eufemísticas que encabeçam os lupanares. Luzes parecidas com aquelas que afastam os sem-abrigo das soleiras de tantas portas. Para os desalojados não há vida, há subvivência. Encolhem-se em cantos resguardados onde só faz frio, gelar não gelam. Para alguns nada existe para além da próxima dose, do chuto que não se sabe se ainda vai ser antes do apito final. Não gente não sexo não fome não corpo. Droga.
Nesta Lisboa não há aves. A alvorada não é ditada pelo querer dum galo nem pelo voar dum bando de pássaros estrenoitados. É o ruído ensurdecedor das fofas solas de borracha dos empregados de escritório que acorda a cidade. Aos poucos, um a um, os habitantes da noite abrem os olhos, sacodem a ressaca e saem de cena. Os cobardes estão a chegar, deixemo-los brincar às suas vidinhas ocupadas.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

A Outra Margem


Às vezes saímos da sala de cinema muito impressionados com um filme que achamos fantástico. Outras vezes, é só passados dias ou semanas que realmente nos apercebemos de como a estória nos tocou. Mais raro é receber um filme como uma facada que, depois da dor inicial, deixa uma cicatriz que vai permanecendo para lá do que julgávamos razoável.

"A Outra Margem", de Luís Filipe Rocha, é sem dúvida um dos melhores filmes que já vi. As interpretações dos actores são muito consistentes, nalguns casos brilhantes, e a fotografia transforma as margens do Tâmega, em Amarante, num idílio que apetece visitar. (Que grande cartão de visita para a cidade!)

Quanto à estória, está resumida numa sinopse disponível no sítio da película desta forma:


"Um travesti que perdeu o gosto pela vida é confrontado com a alegria de viver
de um adolescente com síndrome de Down."

O fantástico protagonista Filipe Duarte, cujo trabalho numas quantas telenovelas eu desvalorizava até agora, foi convidado a explicar sobre o que tratava o filme, em directo para a Praça da Alegria. Atrapalhado, balbuciou "Trata de muita coisa..."

Sim, "A Outra Margem" trata de quase tudo. Tolerância e preconceito, à cabeça. Mas também amor, respeito, medo, afecto, angústia, sonho.

Um filme a não perder. Por ninguém.