Provavelmente, não podia escolher pretexto menos original. Sobre o desaparecimento de Madeleine McCann, tudo o que é irrelevante já foi escrito e até já se disse uma ou outra coisa com interesse. Porém, este fenómeno, de origem demasiado comum mas de contornos inesperados, pôs a nu mentalidades que julgávamos mais cobertas. Sejamos então voyeuristas.
Quase desde o início desta estória, uma das coisas que mais me chamaram a atenção foi a querela patriótica à volta do caso. Antes de mais, lembremos dois pressupostos, talvez ingénuos mas certamente desejáveis. Primeiro, quer a vida humana, quer a justiça são mais importantes que qualquer provincianismo ou patriotismo.
Segundo, o jornalismo busca a objectividade e o jornalista não alinha com nenhuma das partes envolvidas. Diz o Livro de Estilo do Público:
"O jornalista do Público não está obrigado à neutralidade quando estão em causa valores fundamentais da vida em sociedade, designadamente os relativos aos direitos humanos, desde logo os contidos na Declaração Universal dos Direitos do Homem. O jornalista do Público também não é neutral em conflitos entre liberdade e escravidão, compaixão e crueldade, tolerância e intolerância, democracia e ditadura, livre informação e censura, paz e guerra. Não é ainda neutral na defesa do direito humanitário internacional".
Estas são, e muito bem, as excepções à neutralidade jornalística que o Público se admite. Suponho que a generalidade dos outros media, caso tivessem um livro de estilo, consagraria restrições semelhantes.
Parece-me claro, todavia, que o Público e a Imprensa em geral, esquecem outra excepção importante e demasiado evidente. Em todo o noticiário desportivo, é claríssimo o apoio às equipas e selecções portuguesas. Um apoio discutível, certamente, mas que numa primeira abordagem não comporta grandes perigos.
O mesmo não acontece com outros tipos de patriotismo. Transformar o caso McCann num jogo em que o Reino Unido defronta Portugal é uma deformação perversa. E não é preciso fazer uma análise noticiosa exaustiva, ao melhor estilo de Cristina Ponte ou Estrela Serrano, para ver que é isso que tem acontecido sucessivamente, de ambos os lados.
Numa primeira fase, os britânicos puseram em causa a segurança do Ocean Club, enquanto os portugueses preferiam salientar que os pais da criança a tinham deixado sozinha durante muito, demasiado tempo. Depois, choveram as críticas vindas do Reino Unido para a forma como a polícia portuguesa estava a (des)actuar. Chegou-se ao ponto de dizer que os investigadores ingleses que se deslocaram ao Algarve teriam dado instruções aos inspectores portugueses.
Por cá, reagia-se com irritação às bocas deste irmão mais velho que ninguém encomendou e optou-se por atirar contra os McCann. Que eram suspeitos, que estavam diferentes, que tinham usado a Imprensa. E logo passou a indignação para o lado do nosso mais antigo aliado. Não podia ser, Kate e Gerald - se o homem se chama Gerald, porque lhe chamam sempre Gerry? - estavam inocentes e queriam tramá-los.
Esta triste novela chauvinista nada teria de dramático se falássemos apenas do cidadão comum, livre de dizer os disparates que quiser. Preocupante é que esta guerra se tenha feito na Imprensa.
Apetece-me deixar a minha própria deixa patridiota: que os media britânicos sejam maus, é lá com eles, mas dos portugueses quero o melhor que conseguirem.