O elevador, todos os dias. Fosse a senhora gorducha do quarto andar ou o velhote do terceiro, a história era sempre a mesma. Ainda a porta não se fechara nas suas costas e começavam a debitar palavras incompreensíveis. O pior era o final: um olhar inquisitivo e a espera silenciosa por uma resposta.
“Ne rasun”, balbuciava a jovem com um encolher de ombros. E recebia o segundo olhar: desilusão, pena, um pouco de irritação, muita incompreensão. Era inevitável; apesar de Beatriz morar no prédio há seis meses, os eslovenos não conseguiam perceber que a jovem não falava a sua língua.
Nos primeiros tempos, Beatriz roía-se com curiosidade. Já depois de chegar a casa, remagicava sobre o que pretenderia dizer o vizinho. Aos poucos, porém, estes diferendos babélicos passaram a só lhe trazer saudade. Quem lhe dera discutir se os dias estão a ficar mais pequenos ou se dão frio para o fim-de-semana. Beatriz sentia a falta do alegre conforto do banal e cada vez lhe custava mais a partilha autista do elevador. O incómodo destas conversas foi sendo cada vez mais incómodo e as conversas cada vez menos conversas.
Um dia foi diferente. Beatriz e o magricela do terceiro esperavam o elevador. Os eslovenos não são mal-educados de todo; ele abriu a porta com uma mão e fez sinal com a outra para que a moça entrasse. E no mesmo segundo, os dois arregalaram os olhos.
Um enorme frigorífico, branco e um bocado ferrugento, ocupava grande parte do elevador. Esquecido não podia estar nunca houve notícia de electrodomésticos fugitivos. Beatriz e o vizinho não disseram nada. Passado o primeiro mudo pasmo, desataram a rir até cada um sair no seu andar.
O frigorífico foi uma bênção para as viagens elevatórias de Beatriz. Já não há dúvida possível, qualquer conversa que se passe no ascensor tem como assunto o grande órfão branco. Os vizinhos palram em esloveno, com muitos acenos de cabeça à mistura. Beatriz responde o que lhe apetece, em inglês ou português. Todos são felizes e já todos a entendem. Mesmo quando diz que deve vir aí chuva.
1 comentário:
Diz a retórica tradicional que quando se faz um elogio começa-se pelo mau e acaba-se no melhor.
Expressões como "diferendos babélicos" não podem coexistir num mesmo texto com "nunca houve notícia de electrodomésticos fugitivos". Os tons são tão diferentes que se tornam discordantes. Ambas as ideias são boas, só não funcionam num mesmo texto. Aliás, a primeira, e possivelmente a melhor, parece-me deslocada do texto todo. De resto, o texto apresenta algumas quebras de ritmo neste sentido.
É verdade que é difícil fugir aos clichés como "a senhora gorducha do quarto andar", mas é possível dar-lhes a volta.
Há um único factor que torna o texto pouco credível: porque haveria a Beatriz de se mudar para um prédio onde só vivessem eslovenos? Será que isso existe em Portugal?
O texto tem um bom começo, confuso e (depois da introdução de "ne rasun") até perturbador que faz com que o leitor procure o sentido da estória e se interesse. É bem pautado em parágrafos curtos e sem informação desnecessária e marcado com expressões, por vezes deliciosas, que oferecem um cariz mais profundo porque mais reflexivo. E a reflexão sobre o quotidiano é o grande tema da literatura actual, de resto bastante bem explorado neste texto.
P.S.- Trabalhar os textos não provoca dor, ou cansaço, ou fadiga muscular e faz com que um texto bom e uma ideia original se transformem numa história óptima.
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