
Existem, por alto, três motivos para eu gostar de ver um filme. Em primeiro lugar, ser um bom filme de autor, com originalidade, daqueles que ficamos a digerir durante horas, dias ou anos. Ou em que pelo menos nos surpreendemos, pensámos em algo novo, ganhámos alguma coisa por ver o filme. Por exemplo, os meus dois filmes portugueses favoritos: “Alice” e “Outra Margem”.
Depois, há filmes que partilham temas e estéticas que, vá-se lá saber porquê, me atraem muito. Argumentos inspirados em prisões, favelas, gangues geram obras que, sem precisarem de ser primas, me caem no goto. Exemplos: “Carandiru” ou “Os Condenados de Shawshank” (que só podem ter inspirado a excelente série “Prison Break”).
Finalmente, temos os filmes que servem para aprender alguma coisa sobre um tema. Bem sei que Hollywood é a pior inimiga dos historiadores, mas saber qualquer coisa sobre Roma, mesmo que afinal o Nero não fosse louco e a Cleópatra fosse feia como a noite escura dos trovões, sempre é melhor do que pensar que é apenas uma estação de metro. O último filme que vi deste género foi “Gandhi”.
Raro mesmo é encontrar um filme que reúna as três condições. É o caso de “Cidade de Deus”. O assunto é o mais pertinente possível num Brasil onde as desigualdades sociais são gritantes e onde nascer numa favela é quase uma condenação à subvivência. A violência é brutal e repugnante, do princípio ao fim. A cena em que uma criança que ainda nem fala como deve ser é obrigada a escolher se quer levar um tiro no pé ou na mão perante o gozo dos mais velhos é arrepiante.
Ao mesmo tempo, a montagem pouco comum, com avanços e recuos quase à laia de capítulos de banda desenhada, leva o filme, que é pontuado por um humor inteligente, para um patamar superior.
Meirelles filma a vida difícil das favelas e mostra como a discriminação e a falta de oportunidades são castradoras dos sonhos dos pobres, nestes guetos onde as boas intenções pouco contam. Ele revolta-nos mostrando um sistema podre que se alimenta e alimenta a maldade intrínseca das pessoas.
“Cidade de Deus” é um óptimo momento de cinema mas é também um enfoque num problema que está longe de se resolver. É isso que evidenciam as últimas cena do filme, marcada por uma ironia triste. Os garotos da “caixa baixa”, um grupo de meninos nascido e criado num ambiente de guerra urbana, perdem o respeito pelo até aí todo-poderoso Zé Pequeno e afogam-no numa chuva de tiros à queima-roupa. Aparecem depois, com as pequenitas mãos esticadas para conseguir agarrar as armas que todos possuem, deambulando pelas ruas da favela e discutindo quais os próximos alvos a “passar” (a matar). A conversa acaba em qualquer coisa parecida com isto:
“- Parece que está chegando um cara novo na Cidade de Deus.
- Quem?
- Não sei?- Então a gente passa ele também.”
2 comentários:
Esqueceste-te de referir (tinha dado um bom parênteses) que a par da temível indústria de Hollywood também os jornalistas são os piores inimigos dos historiadores.
Um comentário bom, calmo, plácido, mas atento e estimulante sobre uma realidade que cada vez mais ameaça tornar-se, numa especie de conforto burguês, uma estética agradável para a tranquilização das consciências.
(Subvivência é óptimo, pena que foneticamente pareça sobrevivência dito por uma Tia)
Não foi esquecimento, foi omissão deliberada para bem do sentido, da pertinência e da estética do texto e porque ele não serve propósitos truculentos de um ou outro historiador quezilento. Cumprimentos, caríssimo.
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