Uma das últimas edições da Única publicou uma peça sobre “seis histórias das heranças íntimas de famílias mediáticas: um Prémio Nobel (José Saramago), um militar entre o herói e o vilão (Otelo Saraiva de Carvalho), o médico que reduziu a mortalidade infantil nacional (Albino Aroso), um empresário de sucesso (Alexandre Soares dos Santos), o homem que mais leis fez em Portugal (António Almeida Santos), um Prémio Pessoa (João Bénard da Costa) e, sobretudo, os seus meninos do coração”. Com a legitimidade de uma neta desconhecida, traço neste post a história de um bon vivant (MR) que tem quatro meninos do coração.
A minha família não é mediática. O meu avô não escreve livros, não é herói militar, não trata da saúde das crianças, não tem empresas, não redige leis e não faz filmes. Do alto dos seus 75 anos, o meu avô vive a vida. Ao máximo.
“Então avô, 65 anos?”, perguntava. “Não! Que ideia! 56!”. Durante anos, a piada foi sempre esta. A 19 de Abril de todos os anos, o MR respondia o inverso da idade completada num dia, dizia, igual a todos os outros: cheio.
Não me lembro do meu avô paterno. Faleceu quando tinha pouco mais de um ano de vida. O meu avô MR foi, e é, a figura masculina ancestral da minha família. Aos domingos, ainda criança, o meu passatempo favorito era remexer nas caixas de fotografias que a minha mãe guarda no móvel da sala. As imagens levavam-me a um país que (ainda) não conheço, de areias desérticas, camelos e labirínticas medinas. Nascido em Queluz, no seio de uma família pobre, o MR cedo partiu, com os tios, para o continente africano.
Marrocos recebeu-o e lá ganhou a paixão dos motores, dos óleos e dos aceleradores dos automóveis cujo arranjo lhe deram uma vida estável. As fotos que a minha mãe guarda mostram um MR destemido que se debruçava em penhascos na zona de Fez, acelerava em motas nas ruas de Casablanca (o que lhe provocou um coma de algumas semanas) e organizava grandes almoçaradas com amigos e família. Bom vinho incluído.
Depois de Marrocos, o regresso a Portugal. Na bagagem, o ofício dos carros, uma mulher doente, dois filhos quase adultos e os poucos pertences que decidiram fazer passar na alfândega tão bem conhecida das férias de Verão rumo ao Algarve.
A minha avó materna faleceu pouco depois, sem conhecer os quatro netos. O MR fez o luto com a naturalidade de quem sabe que a vida consegue ser rude e imprevisível como a arte mecânica dos automóveis. Mulheres, lindas, novas, velhas, magras, gordas. O MR teve muitas.
Do motor passou para o volante. Durante anos, foi motorista do embaixador do Zaire. Entre uma e outra ida à papelaria da Fontes Pereira de Melo, conheceu a companheira, quase 20 anos mais nova, com quem vive há mais de 15, entre algumas zangas, dois casamentos e um divórcio. Todos os processos com a mesma pessoa. De pele muito branca e olho azul, são essas cores tranquilas que amparam o colérico MR nas suas crises de engenho tecnológico. Um dos seus hobbies é fazer experiências com leitores, TV’s e outros equipamentos que vai adquirindo através de suaves prestações no Jumbo de Alfragide.
As idas à casa do meu avô, na Reboleira, eram verdadeiros happenings. O meu avô era sinónimo de travessia do Tejo, com direito a autocarro amarelinho. Era sinónimo de sotaque francês carregado, herança da vivência cosmopolita de Casablanca, de teimosia, cantarolices, histórias surreais e uma energia imensa.
O MR tem diabetes e colesterol elevado. É hipocondríaco. Sabe o nome de todos os medicamentos e acha que tem todas as doenças. O seu maior divertimento é vencer as maleitas ou, pelo menos, contorná-las, recorrendo ao medicamento que entende tomar, ainda que contra indicação do médico de família. O MR tem um farmacêutico amigo que lhe “facilita” o acesso ao último grito da boticária.
Pela primeira vez, neste aniversário, o meu avô disse-me, manifestando algum cansaço, que fazia 75 anos e não a idade inversa. A verdade é que o MR já leva qualquer coisa como 27.375 dias de vida cheia.
Num só homem, a riqueza de muitos livros, as proezas de um herói real, o domínio da saúde, a gestão da empresa familiar e as muitas leis que insiste em desobedecer.
Que o cansaço não te vença avô.
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3 comentários:
Que vontade de conhecer o avô MR!
É uma figura e tanto, acredita! Afinal, é meu avô, ahah.
Não vale, não vale! Se o texto só por si já tá delicioso, então para quem ja não tem nenhum dos dois (e não chegou a conhecer aquele que, segundo a família, ía ser seu grande camarada) é mesmo de por inveja. Tens de trazer o avô MR para uns copos no bairro!
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