Nas noites de quarta-feira, os carros são muitos nos acessos da cidade. Em magote, furam o nevoeiro com pares de olhos amarelados mas desaparecem assim que entram no coração de Lisboa. Preferem as circulares e as estradas sem identidade, vias onde não se vive, só se corre. Parecem temer a história e recusar um passado que é de todos. Escondem-se, desviam-se, apressam-se. Quando um ou outro foge da rota e se atreve a infiltrar-se nas ruas logo se apressa a corrigir o erro. Estou aqui a mais, ao menos que não me vejam.
As ruas são dos almeidas, da bófia e dos taxistas. Os homens do lixo apressam-se, estardalham, quebram o pacto de silêncio. Têm cor e têm voz. Esta é a hora e este candeeiro é o meu sol. Mas até para eles há frio e o tempo é salário. Corram portanto, corram por tanto.
Os bófias não são todos iguais. Alguns acumulam-se nas carrinhas da intervenção. Grandes, fortes e desperdiçados. Bovinos observadores da cidade. Os outros solitários. Atirados para cantos, são postes que não iluminam. Fantasmas desiludidos que olham os bêbedos de garrafas na mão e sonham com uma caneca de leite quente.
Os taxistas são pessoas. Não interessam.
Nas esquinas há putas e travestis. As putas negoceiam sexo. O corpo não está à venda porque já não tem dono há muito tempo. Estão prostibrutas.
Os travestis são as maiores quengas de todas. Carcaças de maquilhagem e lantejoulas. Abrem o casaco de peles e abanam o mamaçal à solta. O espectáculo é gratuito e obrigatório, come e cala.
Pelos condes redondos há predadores. Vêm aos cinco e aos seis, saídos de Mercedes e BMW pretos. Os vidros não são fumados senão não me vias, filha. Felizes sejam os machos. Procuram as portas das showgirls, das casas de strip, dos clubes privados.
Iluminam-lhes a busca os néons das letras eufemísticas que encabeçam os lupanares. Luzes parecidas com aquelas que afastam os sem-abrigo das soleiras de tantas portas. Para os desalojados não há vida, há subvivência. Encolhem-se em cantos resguardados onde só faz frio, gelar não gelam. Para alguns nada existe para além da próxima dose, do chuto que não se sabe se ainda vai ser antes do apito final. Não gente não sexo não fome não corpo. Droga.
Nesta Lisboa não há aves. A alvorada não é ditada pelo querer dum galo nem pelo voar dum bando de pássaros estrenoitados. É o ruído ensurdecedor das fofas solas de borracha dos empregados de escritório que acorda a cidade. Aos poucos, um a um, os habitantes da noite abrem os olhos, sacodem a ressaca e saem de cena. Os cobardes estão a chegar, deixemo-los brincar às suas vidinhas ocupadas.
1 comentário:
À parte certos exageros que não conhecem resultado e um grupo muito restrito de frases que não deviam ocupar lugar aqui, o que escreves é muito bom.
Eu deixei-me arrebatar por completo: o retrato é vivido, forte, vibrante. Ao mesmo tempo despretensioso, porém cuidado e logo real.
Há pequenas delícias como colocar vulgaridades como as putas em pequenas preciosidades como os lupanares.
Resta saber se a opinião de um cobarde ocupado na sua vidinha ocupado ainda faz sentido aqui.
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