Há poucos dias fiz a minha primeira viagem de avião. Há poucos dias conheci os Açores, apresentados pela Terceira. Ao mesmo número de dias perdi alguém de vista. Para sempre.
Estava tensa e ansiosa. Tive que gerir o facto de não ter escolhido o dia, o destino e a companhia da primeira viagem de avião. O momento que deveria ter sido programado, pensado e repensado, acompanhado de uma mão e de uns olhos familiares foi-me lançado quase de véspera. De repente, tinha ao meu lado duas pessoas que fazem dos lugares de avião a sua casa. No momento da descolagem, a música ambiente do avião era a one hit song de Shawn Mullins, Lullaby. O refrão era claro: “everything is gonna be alright, just rockabye”… E eu acreditei na letra. Tinha o Sol em cada lado, o Expresso ao colo e o Shawn Mullins no ar. De repente, estava a levitar. Já tinha imaginado vezes sem conta como iria descrever a sensação da descolagem: levitação é a minha eleita. Da janela via a minha adorada Lisboa minguando e pensava como sou pequena e indefesa. Um grão de pó no ar. E, por cima das nuvens, senti um respeito imenso por aquela máquina, asas, turbinas, motores e tripulação. Senti um respeito imenso pela morte, a mesma que, nesse dia, sem saber, levaria alguém que deveria estar a aproveitar as suas merecidas férias com sabor a mojitos à beira-mar.
A Terceira. Linda de morrer. Mais uma vez, o pensamento da morte e da vida. Inevitável numa ilha que nasceu da morte vulcânica, que parece intocada pela mão do Homem. Um paraíso no meio de um oceano. Verde do mais verde, azul do mais puro. A acelerada condução do guia incansável que nos mostrou tudo quanto possível em dois dias, por curvas e contra-curvas, subidas e descidas sinuosas, faziam-me querer conhecer mais e mais. Ali estava eu, no meio de um grupo de seres de idades e vivências tão diferentes, tão ricas. O prazer do riso, das conversas e da partilha testemunhados pelas mantas de retalhos. Três chamadas não atendidas. Uma mensagem de voz de alguém querido que está longe. Uma preocupação às três da madrugada da Terceira, quatro de Lisboa. Um pedido de devolução de chamada quando propício o momento, um timbre de voz triste, um anúncio de má notícia.
Uma noite depois, a chamada, nos poucos minutos em que me encontrei só. A notícia recebida no meio das hortênsias e do azul, sempre o azul, no horizonte dos meus olhos húmidos. Como gerir uma informação destas quando se está insulada do resto do mundo e, ao mesmo tempo, absorvida do propósito e das caras que me levaram aos Açores… Respirei fundo e pensei que só podia racionalizar a informação recebida na segunda-feira, de regresso a Lisboa e à realidade. Pelo meio, as inevitáveis lágrimas, a partilha. Sempre. Constante. A troca de confidências, de cartões de contacto, de promessas de regresso e de projectos. Flashes daquela pessoa com um sorriso lindíssimo e aberto. Os olhos. Azuis. O tapete com a bagagem que nunca mais chegava, a boleia à espera, o café nas escadas, a gargalhada. Mais dois flashes que vieram e foram. O regresso. Sacos no chão. Telefonema de parabéns à JP, o conforto da voz amiga, o não contar a notícia sobre a pessoa que não conhece. O querer adiar a constatação da realidade. A mensagem escrita de alguém que também precisa de fazer o luto. O recordar do azul profundo dos olhos curiosos que me disseram até breve na partida da ilha comum no último dia do emprego que nos apresentou.
A J. morreu numa ilha longe da Terceira. No mesmo dia que levitava no ar e pensava na vida e na morte, a J. morria numa estrada espanhola. Tinha 26 anos e só queria ir de férias para descansar do trabalho incessante e beber mojitos à beira-mar. Por mais cliché que pareça, lidar com a perda de alguém tão novo faz-me querer agarrar a vida o mais que possa. Faz-me querer dizer aos meus amigos e família o quanto gosto deles. Faz-me dizer mais disparates só por dizer e para poder rir. Faz-me querer apaixonar pelo rapaz que conheci há poucos dias. A J. só tinha 26 anos. Não é justo.
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2 comentários:
Amiga, compartilho contigo todas as emoções que descreves (sempre tão bem). Desde o respeito sentido pelos aviões no primeiro dia em que neles viajei (e que ainda hoje se mantém, são uma máquina verdadeiramente fantástica), ao falhar das palavras no que toca a descrever esse arquipélago maravilhoso e que temos tanta sorte por ser nosso, até à impotência da perda que nos faz, estranhamente, querer viver tudo, mais, melhor.
Um beijo grande para ti e obrigado também por me recordares que esqueci os anos da JP (já me dei chicotadas por isso)***
Amiga, obrigada por deixares este comentário :) Um beijo grande para ti e não te chicoteies mais!
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